«A manada de veados espantados pelo caçador é aqui a narração figurativa da mancha de texto a formar-se e a desmoronar-se à medida que se forma, por via dos seus próprios conflitos e inter-relações. A visão da manada metaforiza a de um parágrafo que ainda não se apercebeu da sua situação de presa. Ao mínimo gesto expressivo, a mão do escritor afugenta o objecto visado, que luta com ferocidade animal por não se deixar apanhar. A analogia com o aparecimento do texto numa página é construída com tal rigor que Flaubert a representa por etapas, em que se reconhece o padrão sexual: da volúpia contemplativa (“A expectativa de tamanha matança sufocou-o de prazer durante alguns minutos”) à entropia associada ao acto — e, finalmente, à prostração e à imobilidade. O torpor depressivo perante um vazio que sucede a escrita, análogo da prostração pós-coital, é mimetizado aqui na descrição erotizada de corpos distendidos, lacerados, cobertos de secreções, cuja “ondulação dos ventres [diminui] gradualmente”. A confusão de corpos trepando “uns por cima dos outros (…) com as suas armações enredadas” descreve um quadro vivo da dinâmica dos nexos e dos choques gramaticais, semânticos, figurativos, sonoros (“as suas armações enredadas”), que acompanha os avanços e recuos na escrita de um parágrafo, de uma cena, de um capítulo, formando agregados “que se [desmoronam] ao deslocar-se”, à semelhança de um texto em processo de ser escrito cuja forma provisória se desmorona assim que uma parte é deslocada do rebanho, multiplicando as fricções, os espaços vazios na mancha, e assim sucessivamente, numa entropia que tende para o equilíbrio, “Até que tudo [fica] imóvel.”»
A Luz e a Escrita discute ‘A Lenda de São Julião Hospitaleiro’, de Gustave Flaubert. Brevemente: Relógio d’Água, 2023.